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Alta do preço de alimentos dobra custo de festas do candomblé e ameaça rituais

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Alta do preço de alimentos dobra custo de festas do candomblé e ameaça rituais

Celebrações que custavam R$ 5 mil antes da pandemia estão saindo por R$ 10 mil.

Por: Pesquisa Web

Os adeptos do candomblé acreditam que é através da alimentação - fonte de energia e poder - que conseguem se comunicar com as suas divindades. Um provérbio africano diz que os orixás se alimentam pela boca dos seus ‘filhos’. Por isso, em todos os rituais da religião, a comida está presente. Mas, com a alta dos preços dos alimentos, os rituais estão ameaçados e muitos líderes já deixaram de fazer grandes festas, que dobraram de preço. Uma festa para 200 pessoas, que antes da pandemia custava R$5 mil, agora custa R$ 10 mil. A matéria é do Jornal Correio*

É o que diz a Ialorixá Ivone Maria Correia, do Terreiro Ilê Axé Igbalé Afulelé Mejê Oromim. Ela não faz mais festas e mantém somente os rituais mais simples.

“A minha saída foi não dar mais festa porque não tenho condições. O que eu estou fazendo hoje é o básico, o orixá está ficando sem festa. Antes, a gente pagava R$ 5 mil para 200 pessoas; hoje está custando cerca de R$ 10 mil”, diz.

Ivone conta que não há como substituir os alimentos, porque cada orixá demanda uma oferenda específica. Não é como compra de mercado que, quando a carne vermelha está mais cara, o consumidor pode substituir pelo frango. “No candomblé não tem como substituir, não pode. Se é frango que o orixá pede, tem que ser frango. Se é bode, é bode, e assim vai”, acrescenta. 

A ialorixá diz ainda que não dá mais festas, mas que não tem como parar os rituais. “Aqui, eu faço um ritual por mês e isso significa, para a gente do axé, o ganha-pão. São nesses rituais que os clientes buscam a gente. Para o cliente, se não tem ritual, não tem renovação das energias, não tem pedidos alcançados. A pessoa normalmente vem pedir por um emprego, pela cura de uma doença, abertura de caminhos. Se não tem esse ritual, a crença é afetada”, finaliza. 

O babalorixá Pai Pecê, do Terreiro Oxumaré, conta que as festas que ocorriam no local com R$ 2 mil, agora estão custando R$ 4 mil. Ele lembra que os terreiros não se baseiam somente nas oferendas. “Essas festas têm data certa para acontecer, mas, no cotidiano, temos os rituais e oferendas e ainda a alimentação dos filhos e da comunidade em geral. O jeito que a gente vem encontrando é contar com a colaboração de todo mundo, ir dividindo, quem pode mais dá mais”, diz. 

Para muitos terreiros, os rituais e as festas são o que os mantêm de pé. Por isso, alguns permanecem com os grandes eventos, mas sentem no bolso o aumento de preços.

“Dependendo do tamanho da casa, um caruru não sai por menos de R$ 2,5 mil. Se tem aqueles bolos confeitados, bolos bonitos para um monte de gente, custa entre R$ 1 mil e R$ 2 mil. Hoje, ninguém pode fazer um bolo desse nível, porque se fizer vai faltar para outras coisas”, avalia o babalorixá do Terreiro Ilê Obá L’okê, Vilson Caetano, que também é antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

Principais altas
De acordo com dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do mês de outubro, o frango inteiro, muito utilizado nos terreiros de candomblé, foi o que mais teve aumento de preço, sofrendo uma variação de 27,08% em um período de 12 meses em Salvador e Região Metropolitana. O feijão fradinho não é pesquisado localmente pelo IBGE, mas, no cenário nacional, a variação foi de 17,47%. Por conta dos aumentos, a ialorixá do Terreiro Nanã Alodê, Cremilda, também precisou limitar os eventos que realiza. 

Ela explica que não pode mais fazer uma festa grande, com muita comida, porque está tudo muito caro.

“Antes, um bode e uma cabra custavam R$ 50, hoje a gente compra por R$ 300”, declarou a mãe de santo. Para realizar os rituais para suas divindades, Cremilda utiliza muito o feijão fradinho e a galinha, produtos que tiveram grande variação, além de azeite de dendê, quiabo, bode, cabra, galo, pombo, mel, milho e camarão. 

De acordo com dados do IBGE, a variação do milho no cenário nacional foi de 18,45%. Já o camarão sofreu uma baixa de 4,68%, mas, em Salvador e RMS, a variação foi bem mais discreta, de -0,83%. Além do frango, milho e feijão fradinho, outro item que se destaca na variação de preços é o azeite de oliva, um dos elementos que podem ser oferecidos a Oxalá. Na pesquisa local, a variação foi de 14,18%.  

Para o babalorixá do Terreiro Mocambo, Tatá Anselmo, nem o camarão seco ficou de fora dos aumentos, mesmo que a pesquisa mostre o contrário. “Uma lata de azeite, que antes a gente comprava por R$ 70, R$ 75, hoje tá por R$ 180. Um quilo de camarão seco que nós comprávamos por R$ 30, R$ 35, hoje tá R$ 45, R$ 50. E todas as comidas levam camarão seco. E você tem que saber como vai administrar isso”, explicou Tatá Anselmo, em entrevista concedida no dia 6 de novembro. Ele faleceu neste domingo (28), aos 66 anos, por problemas respiratórios decorrentes de uma pneumonia.

O babalorixá Vilson Caetano diz que o feijão fradinho, base para fazer algumas comidas do candomblé, mais que dobrou de preço - custava R$ 3 e hoje custa cerca de R$ 7. Além disso, as aves, que antes ele comprava de R$ 30, hoje custam R$ 50. Já o camarão, que era R$ 30, é comprado atualmente por R$ 70. 

De acordo com o IBGE, o feijão mulatinho sofreu uma variação em Salvador e RMS de 7,35%. A farinha de mandioca também sofreu aumento, atingindo uma variação de 3,34%. O inhame teve queda, ficando com uma variação de -8,7% no cenário nacional, já que também não é contabilizado pelo instituto na pesquisa local. 

Outros itens
O presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), Leonel Monteiro, conta que além dos alimentos, existem outros itens que também sofreram uma alta nos preços, a exemplo do gás de cozinha, que é muito utilizado nos terreiros de candomblé. 

A ialorixá Ivone Maria Correia reforça: “Está tudo um absurdo! Principalmente o azeite de dendê, o camarão e a farinha, mas aumentou foi tudo. A gente não pode esquecer do gás de cozinha, aqui usamos dois botijões por mês e isso pesa demais. Até as velas que a gente comprava antes da pandemia por, no máximo,
R$ 5, agora estão custando R$ 10”, afirma.

A ialorixá Cremilda tomou um susto quando foi comprar itens para fazer um Igbá, que são os elementos simbólicos nos altares das religiões de matriz africana. O Igbá é composto por quartilhão e talhas, que custavam R$ 5 - hoje custam R$ 15. Todos os outros materiais usados também sofreram alterações nos seus valores e para armar o Igbá, os adeptos precisam separar cerca de R$ 400. 

“Eu confesso que nunca vi uma inflação tão alta quanto nesse momento. A pandemia ajudou nesse quadro. Nunca vivenciamos algo parecido. É um conjunto de coisas que afeta muito negativamente na realização dos cultos em sua plenitude”, declara Leonel Monteiro.

Candomblé precisa de alimentos para renovação das energias

As comidas não apenas representam como também são os próprios orixás, de acordo com o babalorixá do Terreiro Ilê Obá L’okê, Vilson Caetano. Cada divindade possui uma comida específica: Ogum come inhame, Oxalá come milho branco, Iemanjá come arroz, Exu come farofa de azeite de dendê, Xangô come quiabo, Iansã come acarajé e Oxum come o feijão fradinho com azeite.

“Cada orixá tem uma regra, eu não posso dar uma galinha para os santos masculinos, que comem galo, por exemplo. O ser humano precisa se alimentar para se manter de pé. Nós precisamos dos orixás para renovar nossas energias. Se a gente não fortalece o orixá, ele não vai ter a fonte de energia para nos proteger. A gente precisa dessa energia para se centrar, alcançar o equilíbrio. Se os rituais não forem feitos, a gente fica vulnerável”, destaca Sueli Souza, produtora cultural voltada para religiões de matriz africana e vinculada ao Terreiro Ilê Axé Òpô Aganju.

A mãe de santo Gayaku Sinay, do Terreiro Vodun Kwe Tò Zò - ou Terreiro da Pedra do Trovão -, afirma que todo alimento é sagrado e necessário para a manutenção da saúde dos adeptos ao candomblé. “Certos alimentos têm valor cultural, como o inhame, que tem uma festa só para ele. O quiabo é outro exemplo de alimento importante para a perpetuação da nossa cultura identitária e religiosa, e nós de terreiro costumamos dizer que ‘quem come quiabo não pega feitiço!’. O feijão e o milho também não ficam atrás, são os alimentos que dão a força do filho de santo”, diz a Ialorixá. 

Esses alimentos são oferecidos aos orixás acompanhados de rezas e cantigas. Durante a festa ou no final, grande parte é distribuída para todos os presentes - são chamadas comida de axé, pois acredita-se que o orixá aceitou a oferenda e a impregnou de axé.

Para líderes, os ritos não podem parar

Com o impacto causado pela alta dos preços, os terreiros vêm buscando maneiras de driblar o problema. É que não existe a possibilidade de não fazer os rituais - o candomblé não pode parar. 

“A gente sente bastante esses aumentos porque o terreiro é local de alimentar as pessoas e tudo na base da ajuda, da divisão. A pandemia já foi um período muito difícil de atravessar, fizemos campanhas de doação e vamos precisar voltar a elas, não só para o Natal, mas de uma forma mais geral porque a gente percebe o quanto as pessoas vêm passando necessidade. O pessoal vem comer aqui, bate na porta pedindo cesta básica”, relata o babalorixá Alcides Carvalho, do Terreiro Sítio da Paz.

Além da ajuda coletiva, outra forma encontrada para driblar o aumento, já que os produtos não podem ser substituídos, é a redução da quantidade - de 30 quilos de comida para 25, por exemplo. 

Questionado sobre uma possível pausa nas atividades, para se recuperar do baque financeiro, o babalorixá Vilson Caetano afirma que a máxima do candomblé é que para tudo há uma solução. “A religião vive e se mantém através de uma rede de solidariedade e ela vem se ampliando cada vez mais porque não podemos deixar de fazer as nossas atividades: nossa vida depende disso, a nossa continuidade, a manutenção da nossa ancestralidade e dos laços que nos mantêm presos às nossas divindades e comunidades. Quando nossos orixás comem, todos nós comemos e existem famílias que precisam disso. Não deixamos de fazer, sempre há um jeito”, explica.

Por todas as cerimônias estarem em volta do alimento, Pai Rychelmy, babalorixá do Terreiro Ilê Asé Ojisé Olodumaré, confessa que está preocupado em não deixar nada faltar na reabertura do terreiro. “Não podemos mudar um alimento que ficou mais caro porque é uma tradição que existe há séculos e que veio da África pra cá”, diz.

“A gente não vai deixar de fazer nada, nós sempre resistimos, desde a época da escravidão. Nós vamos procurar outros meios de manter a tradição”, afirma.

Veja algumas das comidas que podem ser oferecidas a cada orixá

As oferendas podem variar de acordo com o terreiro e a linha seguida por ele. A fonte das informações abaixo é o babalorixá Vilson Cetano, do Terreiro Ilê Obá L’okê

Oxalá
Entre as oferendas servidas a Oxalá está a canjica, uva e azeite de oliva.

Iemanjá
O coco é o ingrediente principal nas comidas preparadas para Iemanjá.

Omolú
A pipoca é a comida principal e pode ser servida com rodelas de coco e feijão preto.

Oxóssi
A comida oferecida é o milho vermelho cozido decorado com fatias de coco. Ele também aprecia frutas e feijão fradinho torrado.

Exu
Este é um dos Orixás mais conhecidos e que come de tudo. As oferendas mais comuns são os padês a base de farinha de mandioca, com azeite de dendê ou mel de abelha, água e bebida alcoólica.

Xangô
Come o caruru, que tem o quiabo como base. 

Oxum
Come feijão fradinho com azeite. 

Iansã
Come acarajé, feito de feijão fradinho. 

Ogum
Come inhame ou feijão fradinho. 

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